Yo,ho,
Todos juntos,
Nossas cores erguer!
Ladrões e mendigos,
Jamais iremos morrer.
(Piratas do Caribe)
Um fenômeno de levante social e global tem chamado a atenção: a adoção da bandeira pirata do aclamado mangá e anime japonês One Piece, como um símbolo de resistência e protesto. Longe de ser apenas cultura pop, a icônica Jolly Roger (nome dado às típicas bandeiras piratas) dos Piratas do Chapéu de Palha (estilizada como uma caveira sorridente com um chapéu de palha), está sendo hasteada por jovens em manifestações que se espalham por diversos países.
O movimento ganhou notoriedade inicialmente na Indonésia, onde manifestantes exibiram a bandeira pirata como uma resposta irônica aos pedidos do governo para que a população hasteasse a bandeira nacional. Em vez da bandeira do país, o que se viu foi a Jolly Roger de Luffy, o protagonista que sonha em ser o Rei dos Piratas, o homem mais livre do mundo.
O gesto rapidamente se replicou, aparecendo em protestos contra a corrupção e a ingerência do governo no Nepal, em mobilizações estudantis na França e em atos contra injustiças em locais como as Filipinas e Peru.
A escolha do símbolo não é aleatória. A obra de Eiichiro Oda, publicada desde 1997, é uma epopeia sobre a busca incessante pela liberdade, a luta contra o establishment, a oposição a governos tirânicos e a defesa dos oprimidos. O capitão Luffy e sua tripulação representam a rebeldia contra a opressão e a determinação em seguir o próprio caminho, mesmo diante de poderes estabelecidos (como a Marinha e o Governo Mundial).
O fenômeno é um exemplo de como a cultura pop globalizada se transforma em uma ferramenta eficaz de “memética política”. Ao invés de criarem símbolos partidários complexos, os jovens recorrem a um signo universalmente reconhecido por sua geração, simplificando a mensagem: somos idealistas, somos determinados e estamos dispostos a lutar por aquilo que é justo.
O grito dos piratas nas ruas ecoa: a busca por um tesouro maior, a liberdade e a justiça social.
O historiador e teórico libertário Peter Lamborn Wilson (conhecido como Hakim Bey) nos convida a rever a história, em seu livro, “Utopias Piratas: A revolta de mouros, hereges e renegados na emergência do capitalismo”. Além das lendas, os corsários, especialmente os do Magreb entre os séculos XVI e XIX, eram mais do que simples ladrões: eles foram precursores de uma resistência radical à ascensão do Estado-nação e do capitalismo global.
O foco central da obra é a análise de comunidades como a república corsária de Rabat-Salé, na costa da Barbária (atual Marrocos). Segundo Wilson, esses enclaves operavam como verdadeiras “Zonas Autônomas Temporárias” (TAZ), conceito que o autor popularizaria através de Hakim Bey.
Tais “utopias piratas” se destacavam por sua natureza sincrética e multicultural. Eram refúgios de uma variedade de “excluídos”: escravos fugitivos, hereges judeus, místicos sufis e, crucialmente, renegados europeus que abandonavam a cristandade para se converterem ao Islã e se juntarem à guerra santa pirata.
O autor argumenta que esses renegados não eram apenas traidores, mas indivíduos que se revoltavam contra o “cativeiro” da ordem europeia, percebida como opressora em suas dimensões econômica, política e sexual. A vida pirata oferecia uma rota de fuga radical e a chance de construir uma comunidade à margem das regras imperiais. Eram redes de “psicogeografias”, outro conceito conectado a TAZ.
E como essa utopia pode nos ajudar a entender a cosmopolítica?
A ideia de que a humanidade é obrigada a confrontar periodicamente seu próprio narcisismo vêm sendo o centro de nossas reflexões. Copérnico, Darwin e Freud nos impuseram as três grandes “feridas narcísicas” ao descentralizarem o planeta, a espécie e a consciência humana. Nos tempos atuais, contudo, o debate sobre uma quarta ferida narcísica, a perca da centralidade do ser humano como único falante no planeta (o multinaturalismo), além da já discutida questão do pós-humanismo, a IA por exemplo, são fundamentais para reconduzir a humanidade para novas direções.
É uma tese radical sobre a resistência. Estas “Zonas Autônomas Temporárias” originais, espaços de liberdade e miscigenação cultural, que operavam fora das fronteiras dos Estados-nação e da lógica da acumulação, são saídas estratégicas contra o fim do mundo.
A relação dessas utopias piratas com a Cosmopolítica é imediata.
As comunidades piratas foram, essencialmente, projetos cosmopolíticos em prática. Elas rejeitaram a narrativa única da civilização europeia e construíram uma ordem social baseada na fuga, no hibridismo e na aliança com a “alteridade”. Ao preferir a vida marginal à submissão ao império e à igreja, esses renegados demonstraram a possibilidade concreta de criar “outros mundos” dentro do mundo, desafiando a universalidade do modelo estatal-capitalista.
Neste ponto o estudo histórico de Wilson se cruza com a urgência da quarta ferida narcísica.
Enquanto as três primeiras feridas reduziram a centralidade geográfica, biológica e psicológica, a quarta, imposta pela IA, pelo pós-humanismo e Multinaturalismo, ataca o último pilar: a supremacia cognitiva. Algoritmos que superam a precisão diagnóstica de médicos, sistemas que escrevem e criam arte. O ser humano, o anthropos racional, deixa de ser o mestre incontestável da inteligência, da criação e do protagonismo do lugar de fala, em prol do parlamento das coisas do mundo.
O impacto dessa ferida é a dissolução final da crença na autonomia total e na superioridade do “Eu” (homem, branco, racional, europeu, ocidental). O delírio perverso das elites do mundo. Como aponta a psicanalista Suely Rolnik o antropo-falo-ego-logo-cêntrico.
Em tempos de ansiedade algorítmica e crise planetária, as utopias piratas não são apenas aventuras históricas. São um convite para abraçar a descentralização, não como derrota, mas como uma praxis de liberdade, mostrando que a vida autônoma floresce. Enfrentar a quarta ferida exige, talvez, um espírito mais pirata e menos narcísico. No filme Piratas do Caribe temos este diálogo, com o qual encerro este artigo:
“Capitão Barbossa: O mundo costumava ser um lugar maior.
Jack Sparrow: O mundo continua o mesmo… só que menos unido!”
Piratas do mundo, desatemos os nós.
Prof. Dr. William Figueiredo é filósofo, psicanalista, pós-doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia e doutor em Ciências da Religião. Especialista em Psicopatologia e Bem-Estar Social pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, atua com atendimento clínico online, supervisão e assessoria em desenvolvimento humano e educacional. É também professor colaborador na Universidade Metodista de São Paulo e no Instituto Ânima, como formador em Educação Socioemocional. Ministra palestras, formações e workshops voltados à escuta qualificada, saúde mental e processos educativos.
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Material cedido por: diariodoentorno.com.br



