A nova trend é do morango do amor. É a nova sensação nas redes sociais, combinando morango fresco, brigadeiro e uma calda crocante, viralizou. Quem se lembra, este status era da maçã. Com licença do trocadilho, mas é um pecado o que fizeram com a velha maçãzita.
Porém este é o universo que vivemos. O que compõe o discurso da sociedade vêm das redes. É um viral. E, um vírus sabemos bem qual é sua função, não é?
Por outro lado, Darcy Ribeiro nos dizia que a coisa mais importante para os brasileiros é inventar o Brasil que nós queremos.
É o brasil do morango do amor? Sabemos que essa trend logo mais vai desaparecer, para outra ocupar o seu lugar. E nesta inda e vinda do que devemos gostar, o que nos faz um povo? Povo brasileiro, talvez seja algo muito grande, perto de cada pessoa com sua individualidade.
Atualmente, muito se fala sobre soberania nacional. Ou seja, o estado brasileiro ter sua liberdade dentro do seu próprio território. Mas como termos liberdade dentro de um território tão vasto, tão simbólico, se nem autonomia temos enquanto povo de escolher o que gostamos, para além do algoritmo?
Esse majestoso Brasil, que “Tenho tão nítido o Brasil que pode, e há de ser, que me dói demais o Brasil que é”. A declaração citada foi feita por Darcy Ribeiro em 1991, durante seu discurso em um evento da Universidade de Copenhague.
A soberania é grande, é um espaço simbólico, que deixa qualquer um espantado, será que temos este tamanho todo? É claro que sim, mas ao mesmo tempo somos um coletivo de indivíduos, que cada dia está mais atomizado, fechado em caixinhas, bolhas, que dificultam a construção comum.
A psicanalista e biógrafa Elisabeth Roudinesco em um livro intitulado “O Eu Soberano: Ensaio sobre as Derivas Identitárias”, nos leva para esta reflexão contemporânea. O universo do Eu está tão soberano que falta espaço para o outro.
A autora argumenta o que ela chama de “derivas identitárias”, que leva à fragmentação social e a um risco de fundamentalismo, onde o “eu” de cada indivíduo ou grupo se torna “soberano”, exigindo uma autonomia que impede o diálogo e a convivência com outras identidades. Todos aqui sabem bem como funciona disputas entre de torcidas organizadas, certo?
Aliado a essa reflexão poderíamos pensar no conceito psicanalítico de Narcisismo das pequenas diferenças, que é uma espécie de oposição e medo sem sentido e primário que temos por pessoas ou grupos, que têm afinidades naturais conosco. O Conceito foi utilizado por Freud em algumas ocasiões, entre elas quando tratou da perseguição aos Judeus à sua época. Identidade, gênero, raça, interseccionalidade, pós-colonialismo, nacionalismo, República, extremismo e religião. Enfim, a gama de relações nas quais devemos nos debruçar é grande.
E no final, como estabelecer uma relação entre o individuo e o grupo? É possível dentro de um mundo onde esse Ego soberano sobrepuja o semelhante? Apenas por não estar na mesma bolha?
O diálogo é difícil, e contra uma soberania, seja de um País, seja de um Eu, sempre haverá ataques. E é necessário nestes momentos que exista laço social. É preciso que possamos reconhecer nossa humanidade, como comenta Roudinesco, o reconhecimento da própria incompletude e da influência do inconsciente abre espaço para a capacidade de lidar com o sofrimento sem a necessidade de buscar uma identidade rígida e fechada.
Ao se fechar em sua própria soberania, o “Eu” se torna incapaz de dialogar com a comunidade, no nosso caso, o país. O outro é percebido como uma ameaça à própria identidade, ou é enquadrado em categorias que reforçam a superioridade ou a vitimização do próprio eu. Isso leva à polarização e à fragmentação social.
Neste sentido, nos permitir compreender nossa fragilidade, é o que nos permite agir em conjunto. Ao sair do isolamento próprio dos grupos das redes sociais, e poder olhar ao nosso redor, e perceber estar no mesmo barco.
A maçã do amor tem uma história interessante. Ela é um doce típico das festividades juninas. Algo que tem o DNA brasileiro. Nossas festividades são muito importantes para pensar a nossa psicologia de grupo. Nossos folguedos, folias, procissões, carnaval, capoeira, nossa musicalidade etc.
A maçã do amor, também conhecida como “pomme d’amour” na França, no Reino Unido, “toffee apple” é consumida na noite de Guy Fawkes (para quem não conhece, é a imagem que ficou conhecida pela personagem do V de Vingança, da obra de Allan Moore, baseado em um soldado que tentou atacar o reinado) a data foi instituída na Inglaterra como uma festividade pela sobrevivência do rei.
Porém, a maçã do amor surge nos EUA por William W. Kolb, que gostava de fazer doces e balas, e começou a colocar as maçãs na calda, o que pelo visto deu muito certo.
O que podemos aprender com a maçã do amor? Que somos muitos, que nossos encontros são o que temos de melhor, que uma ideia pode viajar por muitos países, e criar tradições muito diversas, mas uma coisa ela pode demonstrar, que em cada lugar podemos ser melhores, podemos dialogar, criar laços.
A febre do morango do amor vai passar, não diria o mesmo da maçã do amor, ela fica. E talvez seja isso que o brasileiro precisa prestar atenção, muitas modas vêm e vão, mas o Brasil fica.
Mas para isso precisamos olhar para nossas fragilidades, lidar com nossos traumas, elaborar os nossos lutos. E olhar para a pessoa do meu lado e segurar na mão, e ninguém solta a mão de ninguém, certo?
É sempre tempo de desatar nós!
Prof. Dr. William Figueiredo é filósofo, psicanalista, pós-doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia e doutor em Ciências da Religião. Especialista em Psicopatologia e Bem-Estar Social pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, atua com atendimento clínico online, supervisão e assessoria em desenvolvimento humano e educacional. É também professor colaborador na Universidade Metodista de São Paulo e no Instituto Ânima, como formador em Educação Socioemocional. Ministra palestras, formações e workshops voltados à escuta qualificada, saúde mental e processos educativos.
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