O pensamento dos xamãs se estende por toda parte, debaixo da terra e das águas, para além do céu e nas regiões mais distantes da floresta e além dela. Eles conhecem as inumeráveis palavras desses lugares e as de todos os seres do primeiro tempo […] A mente dos grandes homens brancos, ao contrário, contém apenas traçado das palavras emaranhadas para as quais olham sem parar em suas peles de papel (…) Somos guiados pelos caminhos de espelhos brilhantes dos xapiri, imagens dos ancestrais animais yarori que se transformaram no primeiro tempo […] e que trabalham como auxiliares dos xamãs. Que se espalham pela floresta e se estendem até os confins da terra, onde moram os brancos e estão plantadas as árvores de onde os xapiri obtêm seus infinitos cantos e cujos “troncos são cobertos de lábios que se movem sem parar, uns em cima dos outros”.
(ALBERT, KOPENAWA, A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. 2010, p. 314 e p. 468)
Recentemente, estive em uma roda de conversa com o Eduardo Viveiros de Castro (antropólogo brasileiro), o que motivou muitas reflexões, corroborando a continuidade aos nossos últimos artigos.
Vivemos uma crise de saúde mental e climática que parecem distintas, mas são o mesmo sintoma. Fruto da arrogância de que o homem (termo amplamente utilizado para descrever o homo sapiens) é o único sujeito falante no planeta.
Nós, modernos (seríamos?), nos tornamos arqueólogos de nós mesmos. Graças a Sigmund Freud, aprendemos que não éramos senhores em nossa própria casa; que um vasto continente submerso, o inconsciente, ditava nossos desejos e medos. A psicanálise nos deu as ferramentas para escavar: o divã, a associação livre, a interpretação dos sonhos. Foi uma revolução, o “Eu” tornou-se o grande projeto de nossas vidas.
Passamos cem anos obcecados por essa fronteira interna. Nossas terapias, nossa literatura — tudo se volta para esse universo interior. O sonho, para Freud, era a “via régia” para o inconsciente, um telegrama cifrado que nosso “Eu” enviava para si mesmo, falando de desejos reprimidos e traumas infantis.
No entanto, há uma consequência devastadora nessa autoficção. Ao construirmos a fortaleza do “Eu”, colocamos todo o resto do lado de fora, na categoria de “objeto” e “representação”. O mundo — a natureza, os animais, o clima — tornou-se um cenário passivo, um fato científico a ser observado.
Hoje, essa fortaleza está ruindo. E ela desmorona por dois lados ao mesmo tempo: por dentro (a epidemia de saúde mental) e por fora (a crise ecológica). O “Eu” moderno está ansioso, deprimido e terrivelmente solitário. O “Mundo” moderno está superaquecido, poluído e perigosamente instável.
É aqui que precisamos ter a coragem de olhar para além do divã.
O etnopsiquiatra Tobie Nathan propõe uma brecha nessa muralha. Herdeiro de Freud, mas trabalhando por décadas com imigrantes e refugiados em Paris, Nathan percebeu que o modelo freudiano era, talvez, uma “teoria local” europeia.
Quando um paciente da África Ocidental dizia a Nathan: “Estou doente porque um Djinn (um espírito) me persegue”, a psicanálise tradicional traduziria isso. O “Djinn”, diria o analista, é uma metáfora para o “pai”, por exemplo, ou para a pulsão sexual reprimida.
Nathan fez algo revolucionário: ele decidiu levar o Djinn a sério. Em vez de perguntar “O que esse espírito representa?”, ele perguntava: “Qual é o nome desse Djinn? O que ele quer de você? O que devemos negociar com ele?”.
Ao fazer isso, Nathan redefiniu a terapia. O sofrimento não era mais um conflito puramente interno. O sofrimento era um conflito externo, uma relação conturbada com um “agente” do mundo. Para Nathan, o sonho não é um telegrama interno; é uma “visita”. A pergunta muda de “O que você sonhou?” para “Quem visitou você esta noite?”.
Essa ideia sugere que não estamos sozinhos dentro de nós mesmos. Estamos “habitados” — por nossos ancestrais, por nossas culturas, pelas forças que nos cercam. O “Eu” não é uma fortaleza, é uma abertura para o mundo.
E se estamos habitados por espíritos, por que não por rios?
É exatamente essa a pergunta que a cosmopolítica, desenvolvida por pensadores como Bruno Latour e Isabelle Stengers, nos obriga a fazer.
Latour argumentava que a modernidade se baseou numa fraude: a “Grande Divisão” entre Natureza (objetos mudos, fatos científicos) e Cultura (sujeitos falantes, humanos, política). Nós criamos um “parlamento” onde apenas humanos podiam falar, enquanto deixamos a floresta, o oceano e a atmosfera do lado de fora.
A crise climática é o retorno pulsante desses “objetos”. A “Natureza” parou de ser um cenário passivo e tornou-se o principal agente político de nossa era. O clima agora “fala” — através de furacões, secas e pandemias. E ele não está disposto a negociar nos nossos termos.
A cosmopolítica, portanto, é a proposta urgente de criar um parlamento, um “Parlamento das Coisas” (Latour), onde o Rio Amazonas tenha um assento, onde as geleiras polares tenham direito à palavra e onde o coronavírus seja entendido como um ator político.
Viveiros de Castro é crucial nisso. Ele nos fala que os povos ameríndios não precisam “aprender” a cosmopolítica, pois eles sempre a praticaram.
Para eles, a nossa divisão entre “Natureza” (objetos) e “Cultura” (humanos) simplesmente não existe. Em seu mundo, “tudo é gente”. A onça é gente, a mandioca é gente, a Ayahuasca é gente, o espírito da floresta é gente. O que muda não é a “alma”, pois todos são sujeitos com um ponto de vista (perspectivismo). O que muda é o “corpo”.
Ele chama isso de multinaturalismo: o exato oposto do nosso multiculturalismo. Nós acreditamos em uma só Natureza (leis da física) e múltiplas culturas. Eles acreditam em uma só “cultura” (todos são ‘gente’) e múltiplas “naturezas” (corpos diferentes, com necessidades e perspectivas diferentes).
A consequência disso é imensa. A relação de um caçador com uma onça nunca é a de um humano (cultura) com um animal (natureza). É uma relação política, uma diplomacia arriscada entre dois sujeitos — duas “gentes” — que se veem de formas radicalmente distintas. Quando um xamã fala com um espírito, ele não está tendo um delírio; ele está engajado na mais pura diplomacia cósmica.
A psicanálise nos ajudou a entender nosso mundo interior, mas agora precisamos de ferramentas para falar com o mundo exterior — um mundo que, descobrimos, também é feito de “agenciamentos”.
A humanidade teve seu narcisismo profundamente ferido três vezes, como notou Freud.
Primeiro, a revolução cosmológica de Copérnico mostrou que a Terra não é o centro do universo. Depois, a biológica, com Darwin, revelou que não somos uma criação especial, mas parte da evolução animal. Por fim, a psicológica, do próprio Freud, demonstrou que não somos senhores de nossa própria casa, sendo largamente governados pelo inconsciente.
Diante disso, proponho que chegamos à quarta ferida: Nós não somos os únicos seres falantes. Somos analfabetos na língua do mundo.
Por fim, sempre é tempo de desatar nós, ir até a janela e perguntar ao mundo: “Quem é você? O que você quer?”.
Prof. Dr. William Figueiredo é filósofo, psicanalista, pós-doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia e doutor em Ciências da Religião. Especialista em Psicopatologia e Bem-Estar Social pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, atua com atendimento clínico online, supervisão e assessoria em desenvolvimento humano e educacional. É também professor colaborador na Universidade Metodista de São Paulo e no Instituto Ânima, como formador em Educação Socioemocional. Ministra palestras, formações e workshops voltados à escuta qualificada, saúde mental e processos educativos.
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