Não seja um maricas!

Quando criança, não é incomum nós meninos ouvirmos esta frase: “Seja homem, não seja um maricas”. Ela reverbera fortemente no nosso psiquismo. É uma palavra que normalmente vêm do pai, mas não é raro vir da mãe. É uma orientação clara. Uma ordem. No campo do discurso é um ordenamento simbólico.

Quando menino, mais ou menos uns 8 anos, estava ensaiando para a quadrilha da festa junina.

Estava obviamente envergonhado de certa forma, pela pouca habilidade em acompanhar a coreografia, mas o que mais me oprimiu foi um grupo de meninos adolescentes, eles se sentaram na frente onde eu estava, e riam, caçoavam de como eu dançava, e chegou um ponto em que sustentar o lugar ficou inviável, então, parei de dançar, e fui me sentar na arquibancada da quadra.

Ouvi uma professora comentando: “deixa, ele está com vergonha, vê se coloca outro lá”. Não preciso dizer mais nada, para você leitor, imaginar como eu me senti, de quinta categoria.

O medo de ser maricas, me impediu de dançar.

O termo “maricas” é uma palavra de origem incerta, mas que se popularizou no Brasil como um insulto usado para se referir a homens considerados afeminados, homossexuais ou covardes. Embora a palavra não tenha uma origem diretamente ligada a grupos minoritários, ela foi apropriada e utilizada para atacar e marginalizar pessoas, reforçando estereótipos de gênero e sexualidade.

Vamos entender o termo Maricas ou Marica, antropônimo de Maria + -ica. O Sufixo -ica tem origem latina, que por sua vez pode ter derivado do grego -iké, utilizado para designar artes, ciência, técnica etc. (matemática, física, química, cibernética

e gramática), Maria nome comum para mulheres, que nesta flexão indicaria que o homem estaria se tornando uma Maria, agindo como.

Outra teoria, também difundida, aponta para a palavra espanhola “marica”, que tem a mesma conotação pejorativa. De qualquer forma, o termo “maricas” no Brasil passou a ser um insulto multifacetado. Ele pode ser usado tanto para zombar de um homem por sua suposta falta de masculinidade, quanto para humilhá-lo por sua orientação sexual.

O uso de “maricas” é um exemplo clássico de como a linguagem pode ser utilizada como arma.

Ao longo da história, essa palavra foi empregada para desvalorizar, oprimir e discriminar. O termo não apenas ridiculariza, mas também estabelece uma hierarquia de gênero, onde o “masculino” é considerado superior e o “feminino” é visto como fraco ou indesejável. Para a comunidade LGBTQIAP+, a palavra é especialmente dolorosa, pois reforça o preconceito e a violência, contribuindo para um ambiente hostil e inseguro.

Todas estas formas de opressão são uma ideologia, que no fundo não permitem que homens possam exercer sua performatividade livremente. E por outro lado também, temos distorções na tentativa de solucionar o problema.

Recentemente, a American Psychological Association (APA) proclamou que a “masculinidade tradicional” é tóxica. Nada fora do que vimos por todo lado sendo proclamado. Homens são “fechados”, não expressam sentimentos, etc.

Mas como precisamos olhar com clareza para a situação, isso é muito grave. Há muito a psicopatologia e a psicanálise, não aceitam o fato de que um indivíduo possa ser resumido a uma criteriologia médica. Não podemos confundir ideologia com patologia.

Esse discurso só tem uma finalidade, como afirma Foucault e a filosofia pós estruturalista, que é a de domesticação dos corpos. Uma opressão pelo discurso. Pelo dispositivo. Que são ferramentarias das palavras e dos dizeres, que visam o controle, através da cultura como um todo.

Tanto a ideologia do “maricas”, quanto a tentativa de patologizar esta mesma ideologia são verdadeiras máquinas de tortura.

O corpo precisa ser livre, para poder alcançar a percepção de suas finitudes. Porque cada corpo é único. Singular. Quando pensamos na situação dos corpos livres, na performatividade da vida de um corpo, logo vem na nossa mente a ideia de que não estamos livres para nos mover.

O movimento do corpo é rebelde. Ele ocupa lugares e identidades. Um corpo é uma interseccionalidade social, simbólica e biológica. Um campo de batalha. O corpo que ocupa um espaço é também falante, na medida que expressa saberes e horizontes de sentido.

Para Wilhelm Reich, psiquiatra e psicanalista austríaco-americano, as nossas experiências — especialmente os traumas e as emoções reprimidas — não ficam só na nossa cabeça.

Elas se alojam no corpo, criando o que ele chamou de “couraças musculares”. Pense em uma armadura de tensão, formada por músculos contraídos, que a gente vai construindo ao longo da vida pra se defender da dor. Essa couraça nos impede de sentir e de expressar nossas emoções de forma plena, nos deixando rígidos, tanto física quanto emocionalmente.

Mas o trabalho de Reich não para por aí. Ele acreditava que, pra realmente nos curarmos, precisamos ir além da conversa no divã. Reich nos ensinou é que o caminho para uma vida mais autêntica e saudável passa, necessariamente, por um corpo mais vivo e livre. Afinal, a liberdade de ser quem a gente é, começa na liberdade de sentir o próprio corpo.

Na psicanálise, o corpo não é apenas um recipiente para a mente. Ele é a própria expressão do nosso inconsciente, carregando as marcas de nossas histórias, emoções reprimidas e desejos não ditos. E quando esse corpo se move como na dança, algo profundo acontece.

A dança, é um convite para o corpo falar o que as palavras não conseguem. Ela permite que a gente se reconecte com as sensações mais primitivas, com os ritmos internos que muitas vezes são silenciados pela razão. É um campo onde a repressão perde força e os traumas, medos e alegrias podem se manifestar em gestos, movimentos e fluxos de energia.

Ao dançar, estamos liberando as couraças musculares. O corpo deixa de ser uma armadura de defesa e se torna um meio de expressão autêntica. A dança, nesse sentido, não é só uma arte; é uma forma de terapia, um diálogo silencioso e visceral entre o nosso corpo e a nossa alma.

Por fim, a liberdade de dançar, é fundamental para a masculinidade, seja o que for que isso venha a ser, como um horizonte de sentido em cada homem. O que chamamos de tóxico, é o contrário do que aprendi sobre ser homem. Ser homem é ser cuidadoso, carinhoso e leal. Podemos proteger, acolher, refletir e amar. Ou seja, tudo que todo corpo pode fazer, em suas plenas capacidades mais refinadas.

Sempre é tempo de dançar, e com isso, desatar nós!

Prof. Dr. William Figueiredo é filósofo, psicanalista, pós-doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia e doutor em Ciências da Religião. Especialista em Psicopatologia e Bem-Estar Social pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, atua com atendimento clínico online, supervisão e assessoria em desenvolvimento humano e educacional. É também professor colaborador na Universidade Metodista de São Paulo e no Instituto Ânima, como formador em Educação Socioemocional. Ministra palestras, formações e workshops voltados à escuta qualificada, saúde mental e processos educativos.

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