Há artistas cuja obra parece respirar o mesmo ar que o povo. Jô Oliveira é um deles. Filho do Nordeste, nascido na Ilha de Itamaracá e criado entre as ruas e as cantorias de Campina Grande, ele transformou a vida em narrativa visual, traçando com tinta, gilete e memória o retrato de um Brasil que teima em permanecer vivo. Hoje, com oito décadas de vida e mais de cinquenta anos dedicados à ilustração, ao design gráfico e à divulgação da cultura popular, Jô fala com serenidade e humor sobre sua jornada, seus mestres invisíveis e a alma que move seu traço.
Tudo começou, conta ele, quando tinha apenas seis anos e descobriu que o vizinho, um jovem desenhista, permitia que usasse sua mesa de trabalho para rabiscar. “Daí eu nunca mais parei”, recorda. Naquele tempo, os quadrinhos eram o único material impresso cheio de desenhos, e copiar minuciosamente as revistas era sua forma de aprendizado. Nascia ali não apenas o artista, mas o contador de histórias visuais.
As lembranças de infância, permeadas pela cultura popular de Campina Grande, moldaram seu olhar. “Acho que o contato com essas manifestações foi determinante para eu seguir praticando o desenho”, reflete.
A decisão de estudar na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, foi o primeiro grande passo. Mais tarde, uma bolsa de estudos na Hungria, em 1969, consolidaria seu caminho. “Ganhei uma bolsa para estudar artes gráficas em Budapeste. Foi um divisor de águas”, afirma.
Ao falar de influências, Jô não hesita: sua principal inspiração vem do Nordeste. “Sempre tive a pretensão de mostrar nos meus trabalhos as minhas origens. Quero dizer que sou brasileiro.”
A xilogravura e o cordel foram mais que linguagens; tornaram-se identidades. Vitalino, J. Borges, Costa Leite, José Guadalupe Posada e até mestres internacionais como Frans Masereel e Katsushita Hokusai habitam sua memória visual.
“O Nordeste é minha maior influência. As músicas de Luiz Gonzaga e seus letristas moldaram meu imaginário. Já disse uma vez que Gonzagão é o inventor do Nordeste, pelo menos para mim”, confessa, com um sorriso que se ouve mesmo à distância.
Reconhecimento e ofício
Ainda jovem, Jô conquistou reconhecimento fora do Brasil. Antes mesmo de concluir os estudos em Budapeste, publicou uma história em quadrinhos na prestigiada revista italiana ALTER/LINUS. “Acredito que o reconhecimento começou ali, na Itália, onde tive vários trabalhos publicados”, diz.
De volta ao Brasil, mergulhou em diversas mídias: livros infantis, quadrinhos, cartazes e, sobretudo, selos postais. “Gosto muito de desenhar selos. Já fiz cerca de sessenta para a ECT. Ganhei quatro vezes o prêmio de Melhor Selo do Ano e dois de Melhor Selo do Mundo, concedidos na Itália.”
Os prêmios, para ele, são testemunhos de uma trajetória coerente. “Recebi vários prêmios, de ilustração infantil a desenho humorístico. No meu site estão todos listados. Mas o que mais importa é o reconhecimento do povo.”
Seu método criativo é uma combinação de disciplina e intuição. “Tudo começa quando algo desperta meu interesse. Se encontro uma editora disposta a publicar, passo a pesquisar referências visuais. Faço um desenho para convencê-la, e, se tudo der certo, assinamos o contrato. Depois vem a ilustração e, por fim, a impressão e distribuição.”
Mesmo diante das transformações tecnológicas, Jô mantém-se fiel ao artesanal. “A tecnologia não me influenciou em nada. Apenas uso as facilidades de pesquisa e comunicação. Para mim, a criação manual é suficiente. Mas não me oponho à arte digital”, afirma, com a tranquilidade de quem conhece o valor do gesto sobre o pixel.
Ao ser questionado sobre o papel da arte na preservação da cultura popular, Jô é enfático: “A arte é a melhor maneira de preservar nossas raízes. Muitas manifestações religiosas hoje odeiam a verdadeira cultura, porque quem ama a cultura não se submete à lavagem cerebral.”
Seu trabalho, acessível e visualmente vibrante, busca sempre o diálogo com o público. “Por ser baseado nas manifestações populares, é sempre claro e direto. Procuro destacar o lado bonito das expressões do povo.”
Como educador e divulgador, Jô vê sua função como a de despertar orgulho. “Quero que as pessoas se sintam brasileiras, que se identifiquem com o meu trabalho e pensem em suas raízes.”
O tempo e o legado
Aos 80 anos, o artista fala do legado com humildade. “Sou apenas um mero divulgador e amante da nossa cultura.” Quando instigado a aconselhar os jovens artistas, cita Olavo Bilac: “Ama com fé e orgulho a terra onde nascestes.”
Sobre preferências, ele é diplomático: “Não tenho exatamente um trabalho preferido. Gosto muito dos selos postais com temas da cultura popular e de ser reconhecido como criador de quadrinhos influenciados pelo cordel.”
O elo com o Mamulengo
Entre os muitos capítulos de sua carreira, um se destaca pela longevidade e afeto: a parceria com o grupo Mamulengo Sem Fronteiras, que completa 25 anos. “É uma longa e produtiva parceria que continua até hoje. Já produzi cartazes, livros e agora vão encenar uma peça baseada num livro meu. O teatro de bonecos me acompanha desde a infância. Foi o tema dos meus primeiros selos, lançados em 1976.”
Ao falar do grupo, a voz se ilumina. “O movimento dos grupos de Mamulengo em Brasília é vitorioso. É talvez a maior comunidade dedicada a essa arte fora do Nordeste. O Mamulengo Sem Fronteiras prova que os nordestinos em Brasília são guardiões das tradições culturais e defensores de nossa identidade.”
E por que o Mamulengo é tão duradouro? “Porque lança mão do espetáculo cênico e, com grande habilidade, envolve e dialoga com o público. Há algo de mágico nisso.”
Os espetáculos, diz ele, são experiências que o público leva para sempre. “Jamais serão esquecidos. São impactantes e repletos de estímulos.”
Para Jô, o segredo do Mamulengo está em sua capacidade de unir tradição e inovação. “Essa é a alma do folclore: ser tradicional e, ao mesmo tempo, renovador.”
Quando os Correios lançaram três selos em homenagem ao Mamulengo, com tiragem de três milhões de exemplares, ele sentiu que um ciclo se fechava. “Foi um belo começo. Eu tinha acabado de voltar da Hungria e procurei a ECT me oferecendo para desenhar selos. O melhor aconteceu: o tema era o Mamulengo. Desde então, desenhei cerca de sessenta selos.”
Ao final da conversa, o tempo parece suspenso. Jô fala com a serenidade de quem viu o mundo mudar, mas continua a enxergá-lo pelas lentes da tradição. “Que a arte popular seja sempre prestigiada e defendida, e que viva para sempre”, declara, com voz firme e coração manso.
Entre tintas, papéis e memórias, ele segue traçando o contorno de um país que ainda se reconhece em sua cultura. O Brasil de Jô Oliveira é o Brasil das feiras, dos aboios, das festas de rua e das histórias contadas à sombra dos tamarindeiros. É um Brasil que, como ele, não se dobra ao esquecimento.
E talvez seja essa a maior lição do artista: o desenho pode desaparecer no papel, mas a alma do povo, quando retratada com amor e fé, permanece eterna.
*Entrevista exclusiva com Jô Oliveira