Escutar é um ato de amor: uma conversa com Prof. Dr. William Figueiredo sobre saúde mental, humanidade e o papel do educador no mundo contemporâneo

Filósofo e psicanalista, o Prof. Dr. William Figueiredo é pós-doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia e doutor em Ciências da Religião. Especialista em Psicopatologia e Bem-Estar Social pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, atua com atendimento clínico online, supervisão e assessoria em desenvolvimento humano e educacional.

É professor colaborador na Universidade Metodista de São Paulo e no Instituto Ânima, onde forma educadores na área de Educação Socioemocional. Ministra palestras, formações e workshops com foco em escuta qualificada, saúde mental e processos educativos, sempre com um olhar sensível para os vínculos humanos e as complexidades da subjetividade.

Também é colunista neste jornal, Diário do Entorno, onde assina a inspiradora coluna “Desatar Nós”, espaço dedicado à reflexão sobre o viver, o sentir e o cuidar de si e do outro.

  • Professor, o senhor transita por áreas como filosofia, psicanálise, psicologia e ciências da religião. Como essas formações dialogam na sua atuação clínica e educacional?

Desde criança sempre me espantei com os fenômenos mentais, os sonhos, as intuições, e ao mesmo tempo o que mais me deixava confuso eram as relações. Algo obviamente comum para uma criança, mas eu não me dava por satisfeito. Queria entender o porquê das coisas. 

A religião foi logo de saída o que mais me chamou a atenção. Porque meus pais tinham essa relação com algo tão invisível. As imagens dos santos, em especial a imagem de cristo sempre me causava um medo terrível. O que mais tarde estudando compreendi que seja a relação humana com o mistério.

Mas para mim o mistério era para ser desvendado. E não cultuado.

Neste sentido desde a adolescência minha diversão era frequentar bibliotecas, e estudar religiões, e naturalmente isso evoluiu para o estudo da psicologia, em especial Carl Jung.

Neste período, a partir dos 13 anos, eu entrei para uma oficina de teatro, e lá fiquei. Fiz teatro por 20 anos. Trabalhei muitos anos como ator, iluminador e encenador. A arte fez a costura que eu necessitava.

Já minha relação com a educação também segue neste mesmo desconforto, sempre achei que a escola poderia ir além. Quando estava no período escolar, sempre terminava a lição logo, e amava lição de casa. Quando ficava doente, minha mãe ia buscar a lição na escola. E sempre solicitei que os professores me dessem conteúdo novo. E como a escola não dava conta da minha curiosidade eu terminava o horário escolar e ia novamente para a biblioteca.

Foi assim até terminar o ensino médio. Onde eu estudava no período da manhã e a tarde pegava um ônibus e ia para a USP estudar nas bibliotecas de lá, por que tinha mais livros, além de vídeo e outros documentos. 

Entendo a filosofia como uma base, de onde tiramos as ferramentas de observação da realidade, e a psicanálise como uma práxis, um método para colocar em prática o que a filosofia apenas especula. A religião é um manancial de símbolos e linguagens, que podemos abordar por ambas as áreas. 

A educação, como diria Freud, uma tarefa impossível, pois educar é um processo complexo, que envolve paixão, amor e técnica. Eu sou um educador no sentido amplo da palavra, que como Sócrates busca tirar de dentro das pessoas o que já está ali. E ali está uma narrativa, uma história, uma interseccionalidade. 

  • O que motivou a escolha por um pós-doutorado em Psicologia após um doutorado em Ciências da Religião? Houve um ponto de virada conceitual ou clínico?

A proposta de fazer um pós-doutorado em psicologia surge da continuação da pesquisa do doutorado que,  apesar de ser uma pesquisa em ciências da religião, a pesquisa em si era sobre o fenômeno da narrativa: como a narrativa constitui o sujeito de forma que o dizer-se e o contar a história sobre si mesmo, constituindo esse psiquismo que fundamenta o próprio movimento religioso, que eu estudava, o Neoxamanismo urbano. Desta forma a passagem para a psicologia foi natural continuar estudando como esse fenômeno atua dentro de outras perspectivas; no caso a minha pesquisa sobre o abuso de substâncias psicoativas.

Então há como relacionar a pesquisa do doutorado com esse novo espaço que se abre que é como se dá o tratamento de pessoas com dependências químicas, a toxicomania. 

A pesquisa então parte deste olhar sobre as narrativas e como o fenômeno é dos sujeitos através de uma reconstrução da própria história a partir das metáforas, que são construídas durante experiências de transe e que poderiam ser ferramentas de transposição de sentido que criariam neste movimento interno do sujeito condições do tratamento efetivamente e da cura da doença ou da toxicomania.

Então nessa direção a pesquisa dá continuidade ainda no campo da fenomenologia, mas agora com um olhar diferenciado avançando na direção da psicanálise. Então desde 2019 que eu inicie efetivamente a pesquisa em psicanálise e ao mesmo tempo o meu trabalho pessoal o meu processo em psicanálise que vai em algum momento me autorizar com a psicanalista. 

Então esse movimento desde a infância, mas agora efetivamente dentro de uma estrutura acadêmica e do estudo da terapia, mais especificamente da abordagem da psicanálise, se estabelece;

  • A especialização em Psicopatologia e Bem-Estar Social sugere um olhar atento às condições sociais do sofrimento psíquico. Como o senhor enxerga a responsabilidade social da clínica hoje?

A clínica ela tem uma função muito necessária nos dias contemporâneos, mas desde sempre e desde o início dos trabalhos de Freud a clínica vem se mostrando como uma das principais ferramentas de organização do sujeito.

A necessidade de termos um olhar diferenciado, um olhar de fora para que eu possa dizer, para que eu possa me falar e estabelecer a minha narrativa. Reescrever algumas questões que ocorreram na minha infância, mas também trabalhar principalmente no campo da ressignificação. 

A clínica como qualquer outro campo profissional é social e precisa ter um olhar muito detido sobre o sujeito e sobre as interseccionalidade, que é entender que esse sujeito é histórico, que ele é um sujeito que é atravessado por um psiquismo social e que obviamente tem dentro de si um emaranhado de sentidos, de saberes que precisam de uma certa ordenação.

Então essa elaboração que a clínica permite fazer que de alguma forma atue de forma política, mas é o que a gente costuma dizer, é no sentido de uma micropolítica! 

Aquele pequeno sujeito, aquele pequeno outro, que está ali é o cerne de uma sociedade maior e em ato o que a sociedade vem a se tornar. Neste sentido a clínica tem uma atuação social, política, mas obviamente sempre com o corte clínico porque senão a gente acaba saindo do que é mais importante que é a metodologia e é muito importante não nos perdermos na metodologia tentando encontrar a cura ou a solução para os problemas dos nossos pacientes.

Mas levá-los a resolver os seus problemas, levá-los a confrontar com as questões do dia a dia, com as questões das suas patologias. 

E a psicopatologia é um ramo diagnóstico que é diferente da psicanálise que é um ramo clínico. A psicanálise ela é aonde a gente opera a partir desses parâmetros e temos que sempre fazer essa distinção entre a psicopatologia no sentido amplo da palavra, no sentido até psiquiátrico e o que nós entendemos como psicopatologia psicanalítica que é especificamente a forma como nós abordamos o fenômeno mental como um lugar um pouco mais aberto não tão fechado, que não é fruto de estatística, mas uma relação do enodamento desse sujeito com a sua própria narrativa.

  • O atendimento online, que se expandiu exponencialmente nos últimos anos, trouxe que tipo de desafios e descobertas para a prática psicanalítica?

Para a clínica o atendimento presencial é importante porque ela vincula o corpo a presença, ao vínculo com o analista, o vínculo com o consultório e estabelecer, por exemplo, um lugar é constante, contínuo que não existam grandes alterações. 

O atendimento online ele abriu obviamente a possibilidades de atender pessoas a distância, pessoas de outros países e hoje eu posso atender pacientes de qualquer lugar do mundo. Mas ele tem essa limitação corporal, que para nós na psicanálise, o corpo é muito importante, o corpo é fundamento e é o centro onde tudo acontece. Não termos acesso ao corpo obviamente limita a experiência analítica, um gesto por exemplo que é feito na clínica faz muita diferença: um cruzar de pernas, um movimento com as mãos, as roupas que o paciente escolhe para vir até a clínica etc.

Claro que conseguimos pegar alguma coisa disso no online mas a experiência se reduz bastante, porém hoje, diante da situação contemporânea o online tem sido uma ferramenta significativa para atender os nossos pacientes.

  • Na sua experiência com supervisão clínica, quais são os equívocos mais comuns entre profissionais em formação quando se trata de escuta?

O maior equívoco é não fazer supervisão. Eu tenho atuado como supervisor já há algum tempo e obviamente percebo algumas limitações e nos atendimentos essa questão da supervisão não é uma crítica, em sentido de julgamento dogmático, do que deve ser feito. A supervisão é um momento no qual os profissionais podem trocar experiências, um profissional mais experiente pode ouvir e o movimento de escutar o que você está dizendo ali para o seu supervisor poderá abrir novas saídas para casos que às vezes estão muito truncados. A experiência da supervisão é uma continuidade do processo da análise, ela não tem a pretensão de ser um ambiente de julgamento, mas um ambiente de ampliação de sentido. Portanto não há equívocos, mas caminhos que se abrem.

A superstição faz parte do tripé psicanalítico, é a regra do jogo para atuar como psicanalista. Manter sua análise pessoal, estudo da teoria, e para tanto oferecemos grupos de transmissão da psicanálise, com é o caso do grupo que Fluxus que coordeno, e por ultimo o psicanalista deve fazer supervisão dos casos.

  • O senhor atua como formador em Educação Socioemocional em instituições como o Instituto Ânima e a Universidade Metodista. O que ainda falta para a integração plena das competências emocionais nas escolas brasileiras?

Hoje a BNCC solicita das escolas no Brasil o desenvolvimento de habilidades socioemocionais, e essa não é uma tarefa fácil, já que não temos uma educação com esta perspectiva nas últimas décadas. É uma lacuna significativa. E a educação socioemocional tem uma função fundamental na formação de sujeitos socais capazes de alcançar bem-estar e contribuir com o país. Neste sentido o Instituto Ânima é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos que trabalha para a transformação da educação brasileira desenvolvendo programas educacionais de impacto social. Atuando diretamente para garantir que os professores da rede pública tenham acesso a especialização na área de Educação Socioemocional. Atualmente atendemos milhares de professores em vários estados do Brasil. 

Na universidade Metodista eu comecei atuando na especialização em Filosofia da Religião em 2018 e atualmente como pesquisador convidado, através de uma nova pesquisa de pós-doutorado em andamento. Como professor colaborador ministro junto com outros professores aula no Mestrado e Doutorado em Ciências da Religião. Assim como contribuo como coorientador de mestrandos da instituição, que tenham afinidade com minhas linhas de pesquisa.

  • A escuta qualificada é um eixo central do seu trabalho. Em sua visão, o que define uma escuta verdadeiramente transformadora?

A escuta em psicanálise é fundamental, ela é parte do processo, do método.

Nós chamamos isso de escuta flutuante, enquanto solicitamos do outro, lado do paciente, que ele produza uma fala em associação livre, falando livremente sem preconceitos. Essa relação entre a associação livre e a escuta flutuante que produz o que nós chamamos de escuta qualificada.

Essa escuta passa por um processo de treinamento, por isso que o psicanalista não atende só porque ele leu um livro ou ele estudou a teoria do Freud ou do Lacan, ou de qualquer outra escola psicanalítica; O que determina realmente se você é ou não um psicanalista é você ter passado pelo processo de escuta do seu inconsciente através de um processo de análise pessoal.

Portanto quem forma o psicanalista é o processo de análise pessoal, a partir do processo de análise pessoal é que o psicanalista pode se autorizar a iniciar a escuta do outro, visto que ele agora sabe escutar e compreende perfeitamente as falas que vem do inconsciente. 

Essa forma de atuação passa por uma formação que diz respeito a um ofício, é artesanal, e também como diz Lacan, uma ética. 

Faz parte da nossa ética essa escuta que é uma escuta na qual eu não estou julgando, eu não estou escutando pra dizer alguma coisa, eu não estou escutando pra dar uma orientação, uma dica como se fosse um coaching, tentando ajudar aquela pessoa a fazer algo da vida dela, mas eu escuto para ouvir o que não está sendo dito diríamos que a psicanálise é a escuta do não dito.

  • Como professor e palestrante, o senhor circula entre espaços acadêmicos e formativos. A linguagem da saúde mental tem se popularizado. Isso é avanço ou risco de banalização?

Toda forma de divulgação da saúde mental é importante! Não há nenhum lugar onde não é bom falar sobre saúde mental.

O que nós vemos muito e isso é um problema e eu diria que são duas vertentes contemporâneas, que é o fato das pessoas buscarem muito diagnóstico na internet; então as pessoas às vezes vem para a clínica é já pré-diagnostica por testes que elas fizeram no Google. E um outro fenômeno também muito perigoso que nós estamos vivendo hoje é o uso do chat bots como o ChatGPT que é utilizado é como terapeuta, como ferramenta de terapia e isso sim é muito perigoso.

Agora podermos estar nos espaços públicos discutindo saúde mental nas palestras que participo,  os eventos online ou presenciais, formação com professores é sempre muito importante porque nós damos conta desta formação chegar até a ponta, chegar até profissionais que precisam conhecer precisam entender é o que é o efeito da saúde mental.

Hoje atuo bastante na área empresarial, também é fundamental porque é um período da vida da pessoa muito grande, as pessoas passam boa parte de sua vida dentro das empresas trabalhando e elas poderem ter orientação sobre saúde mental e principalmente as lideranças terem acesso à educação emocional e a educação socioemocional é muito rico. Para que elas possam conduzir os seus grupos dentro de um contexto de gestão de RH ou lideranças dentro de empresas ou startups, enfim no geral é muito importante que todos tenham acesso ao conhecimento sobre a saúde mental.

  • Em suas formações e workshops, o senhor dialoga com educadores. O que o universo educacional pode aprender com a psicanálise – e vice-versa?

Não só a psicanálise como outras áreas de estudo da saúde mental como a psicopatologia ou educação socioemocional são ferramentas importantes para a formação de professores.

Para que os profissionais da área de educação possam atuar de forma mais plena sobre os estudantes é importante ter estas formações e é importante que o profissional de educação possa estar em Análise,  porque a pressão é muito grande por resultados, as salas de aulas lotadas, as dificuldades com os materiais, o acesso aos bens da escola, é tudo muito difícil dentro do contexto educacional. Por isso o professor acaba às vezes tendo crises de ansiedade ou desenvolvendo outras patologias significativas.

Então é importante que o professor esteja em análise. Epassando por um processo de psicanálise podem aprender há processos internos como dito até agora, processos que não são ditos, E o não dito é fundamental, porque ele não está à primeira vista, não é a como a gente poderia achar que é fácil apenas ouvindo um estudante você resolver um problema, mas às vezes a questão está além, está em uma outra cena ,está no não dito e isso é muito importante.

A partir do momento que o professor ele mesmo passa por um processo de análise ele também vai desenvolvendo isso que acabamos de falar dessa habilidade de uma escuta do inconsciente.

Da mesma forma trabalharmos os professores para que eles possam ter ferramentas para ajudar os estudantes a desenvolverem competências socioemocionais é fundamental para que nós tenhamos um futuro melhor com uma população mais preparada emocionalmente para lidar com os desafios do dia a dia.

  • Por fim, diante da complexidade subjetiva do sujeito contemporâneo, o que ainda permanece intocável na prática clínica, mesmo diante de tantas transformações sociais e tecnológicas?

O falar, o dizer ainda é algo intocável! a inteligência artificial, o ChatGPT não pode ouvir algo que é muito fundamental no processo clínico que é o silêncio.

As pausas, o silêncio, são pontos fundamentais de uma escuta analítica. A fala só existe porque existe o silêncio; o silêncio sustenta a fala e é através dele que se desenha cada dito, cada não dito, e neste movimento entre o falar e o silêncio que a narrativa se desenha. 

Esse sujeito vai tomando contato com aquilo que independente de qualquer nova tecnologia nós sempre vamos ter contato, que é o desejo. O desejo é fundamental, pois para nós humanos há sempre algo que falta, essa falta é apreendida na nossa experiência humana, a nossa vivência dessa falta é compreendida através do desejo.

O desejo é o que nos move, é o movimento em direção a algo, e esse algo que pode ser desenhado por uma fantasia, pode ser desenhado por uma demanda que vem o dos outros, dos nossos pais, da sociedade, dos nossos amores etc. 

Há sempre um desejo que nos impulsiona para frente nos leva para o futuro, o nosso trabalho como analistas é que esse desejo seja sustentado por esse sujeito num lugar poderoso, no lugar de potência.

Esse desejo sustentando esse lugar do vazio, do esvaziamento e entendendo as noções de finitude, de que eu não posso tudo, porque afinal de contas a vida tem suas limitações e eu poder desejar dentro desse quadro de realidade, como diz Freud: sermos atravessados por esse princípio de realidade. Mas conseguimos lidar com ele com qualidade, sem sofrimento e entender que nós somos humanos, é o nosso motor de vida sustentar um desejo verdadeiro, um desejo que nasce da análise pessoal. 

Mais informações:
www.3eb.com.br
arteveiculo@gmail.com
@trieb_psicanalise

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