Continuando nossas reflexões sobre o Setembro Amarelo, gostaria de compartilhar uma frase, que vi estes dias na rede social, e acho que vale a pena, como um enigma em si mesma, uma semente de pensamento, que exige observação: “O contrário da vida não é a morte, mas o desencanto.”
A frase é do livro Flecha no Tempo, de Luiz Antônio Simas, que é um escritor, professor, babalaô, etc. E quero conduzir nossa reflexão, como sempre, com poesia, colocando o autor em diálogo com uma música, que se chama Canto Para a Minha Morte, de Raul Seixas, um trecho diz assim:
“A morte surda caminha ao meu lado e eu não sei em que esquina ela vai me beijar.”
Somos sujeitos de uma existência concreta no mundo e ao mesmo tempo um ser-para-a-morte, o que não é um fim, mas uma possibilidade. A morte é sempre a de outro; nunca a nossa, pois, ao se manifestar, já não estamos mais lá. A morte, porém, como diz Raul, é “uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida”. Viver é, então, um constante confronto com essa ausência, o que nos obriga a criar poéticas da vontade.
Pretendo fazer essa costura trazendo um conceito, que me é muito relevante, Thaumázein, do grego, o espanto. O termo é presente na fenomenologia do filósofo alemão Martin Heidegger. A admiração, o fascínio, a capacidade de estar diante da vida e poder estar encantado. Ou seja, nosso desejo pela busca de sentido.
A morte, tão temida, precisa ser desmistificada, pois é um tabu para sociedade ocidental, principalmente na modernidade. É um tema que gera certo desconforto, o que é visto, por exemplo, de maneira inversa para os povos originários.
A festa dos mortos, que vemos popularmente no México, é compartilhada por muitas comunidades tradicionais pelo mundo. Há pouco tempo, nossos entes eram velados na sala de casa. Aos poucos fomos nos escondendo desse fenômeno, que é natural. Diz Raul
“Vou te encontrar vestida de cetim
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho
Que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar”
Ou seja, a morte, “que talvez, seja o segredo dessa vida”, como diz o músico, não é um problema em si, ela é contingência.
E, portanto, fica a pergunta: Onde está o contrário da vida?
O pensamento comum, a voz do povo, grita: a morte!
E, de fato, a morte é a fronteira última, a negação do ser, o ponto final. Mas o ser humano, em sua ânsia por sentido, em sua constante busca por ser, já não está se contrapondo a algo que está dentro da própria vida?
O contrário da vida, o que a enfraquece, o que a torna um eco oco, não é a morte, mas a perda do desejo de ser.
A morte é a cessação, o fim da história. O desencanto, por outro lado, é o esvaziamento da história antes mesmo que ela termine. É o fim do querer, o fim do significado. E podemos complementar com nosso poeta baiano: “A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida”.
A vida, em sua essência, é uma vontade. É a pulsão que nos move, o ímpeto que nos faz erguer de manhã e seguir em frente. A vida é a crença de que há algo a ser alcançado, algo a ser experienciado, algo a ser descoberto. A busca pelo belo, o verdadeiro, o bem, de um lugar no mundo. A vida é, portanto, um ato, um projeto. O ser humano se projeta para o futuro, para o que ele pode ser, para o que o mundo o pode oferecer. E é nessa projeção que reside a esperança, a alegria e a dor.
Mas o que acontece quando essa vontade se esvai? O que acontece quando a busca se torna um fardo e a posse da vida, um vazio? Isso é o desencanto. Ele não é a negação da existência, mas a negação do significado da existência. O desencantado não nega a vida, ele a sente como um peso, como uma experiência desprovida de propósito. Ele não busca mais, pois já não acredita que há algo a ser encontrado.
O mundo não é mais um campo de possibilidades, mas um cenário de repetições. As coisas perdem seu brilho, sua aura. A rosa não é mais o símbolo do amor, mas apenas uma planta. O sol não é mais um renascimento diário, mas apenas a luz que precede a escuridão.
E como diz Freud, os poetas sabem muito bem o que nós psicanalistas tentamos tatear. E com uma poetisa podemos entender esse sentimento, Adélia Prado, brilhantemente descreve: “De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo. O mundo, cheio de departamentos, não é a bola bonita caminhando solta no espaço. (…)”
O desencanto é a morte da alma antes da morte do corpo. O ser humano sem poesia, desencantado continua a respirar, a comer e a dormir, mas sua essência, sua vontade de ser, sua capacidade de se maravilhar, está aprisionada. Ele se torna uma casca vazia, um espectador de sua própria existência. O desencanto é um estado, uma negação contínua. O desencanto nos aprisiona dentro de uma experiência vazia.
Nesse sentido, o verdadeiro desafio da vida não é adiar a morte, mas evitar o desencanto.
A batalha da vida não é contra o tempo, mas contra o vazio. E ao mesmo tempo, a capacidade criar, a partir da angústia, uma poética do viver. O nosso ser-no-mundo exige uma constante renovação do nosso sentido, uma re-descoberta da nossa vontade. A autenticidade, a verdadeira forma de ser, exige que nos mantenhamos abertos ao mistério do mundo, à beleza do efêmero, à dor e à alegria.
A vida não é uma linha reta, mas uma dança, uma constante reinterpretação. E é na interpretação que reside a beleza. A morte é o fim da dança, mas o desencanto é a desistência de dançar. A morte é a ausência de movimento. O desencanto é o movimento sem sentido.
Portanto, não temamos o fim, mas o esvaziamento do caminho. A vida não se opõe à morte, que é seu destino esperado. A vida se opõe ao desencanto, que é a negação de seu próprio sentido. E o nosso maior dever é viver, não por medo da morte, mas por amor à vida.
Os versos do cantor e compositor captam a essência da “antecipação da morte”, que para Heidegger é a única forma de vivermos uma vida autêntica. Raul não descreve um fim, mas uma presença constante, um “caminhar ao lado”. A morte é uma possibilidade sempre à espreita, e a incerteza de “em que esquina ela vai me beijar” é o que dá urgência e significado à vida.
Por fim, ao reconhecer que a morte é inevitável e imprevisível, o ser humano é forçado a confrontar seu próprio ser e a se libertar do “desencanto” de uma existência sem propósito, para uma vida de poesia e re-descobertas de si mesmo. Este é o processo que a psicanálise provoca, questionando, a partir da interpretação, onde este fluxo criativo foi interrompido, e remontar as pulsões de vida para linhas de fuga que potencializem a existência.
É sempre tempo de desatar nós, buscar sentidos e encantamento!
Prof. Dr. William Figueiredo é filósofo, psicanalista, pós-doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia e doutor em Ciências da Religião. Especialista em Psicopatologia e Bem-Estar Social pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, atua com atendimento clínico online, supervisão e assessoria em desenvolvimento humano e educacional. É também professor colaborador na Universidade Metodista de São Paulo e no Instituto Ânima, como formador em Educação Socioemocional. Ministra palestras, formações e workshops voltados à escuta qualificada, saúde mental e processos educativos.
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