A tecnologia do encontro

A antropóloga norte-americana Margaret Mead, popularizou uma descoberta arqueológica de aproximadamente 15mil anos, o que ela descreve como um primeiro sinal de civilização efetivamente como conhecemos. 

Trata-se de um Fêmur Curado. 

Claro que encontramos evidências anteriores, há 31 mil anos, encontramos um jovem caçador-coletor em Bornéu, que teve a perna amputada. 

Mas o que Mead quer nos dizer?

A pergunta que ela recebeu de um aluno, era justamente de qual seria o primeiro indício de desenvolvimento do homo sapiens. E como não poderia ser diferente, Mead nos lembra que, a civilização se estrutura no cuidado.

Cuidar é, portanto, a maior tecnologia que adquirimos ao longo da história. Com ela nossa espécie pode se expandir a números incríveis de 8,23 Bilhões de humanos habitantes da nave Gaia.

E neste sentido, o que mais nos interessa é o que significa este cuidado, ainda mais atualmente, onde parece que estamos perdendo esta tecnologia. Aqui uso a licença poética do grego, tekne (arte, técnica ou ofício) e por logos (razão, palavra etc,). A tecnologia é um conjunto de saberes. 

Desde o nascimento, o ser humano é um ser de relação. O primeiro e mais vital encontro é com o Outro primordial (geralmente a mãe ou figura de cuidado principal) representa uma abertura de mundo. Onde podemos nos organizar psiquicamente. Mas o encontro é algo muito maior, ele é a relação que estabelecemos com o Outro (com “o” maiúsculo, no sentido lacaniano), com a cultura, a linguagem, civilização etc.

O encontro inicial é permeado por trocas afetivas, toques, olhares, vozes. É nessa “linguagem” pré-verbal que a criança internaliza modelos de relacionamento, de afeto e de como suas necessidades são atendidas (ou não). Essa base afetiva é crucial para o desenvolvimento da capacidade de se relacionar no futuro.

Mas parece que aos poucos, a tecnologia contemporânea, com os smartphones, e agora com os Chatbots das IA estão diminuindo a possibilidade de se engajar em encontros sociais significativos, de construir amizades e relações de trabalho, o que está ligado à capacidade de cada um de lidar com o que é diferente, com o que o Outro representa, sem se sentir ameaçado ou dominado.

Um fator é importante citar nesta reflexão, que foi a pandemia de COVID. Todos diziam, que existiria um mundo novo após a pandemia. Era uma esperança, que poderia surgir, da experiência do isolamento. O que se esperava, era justamente, que após um período impedido de socializar, a humanidade iria se voltar mais para os contatos “presenciais” em detrimento do online. 

Porém não foi o que aconteceu; durante a pandemia, o hábito de ficar em casa, fazer tudo online, home office, entregas à domicílio etc., criaram o ambiente para se perpetuar o isolamento.  

E a clínica psicanalítica sofreu com este movimento, os pacientes não mais vêm ao consultório fazer o depósito de suas questões. Como dizia o psicanalista britânico Wilfred Bion, o analista atua como um “container” para as angústias e emoções do paciente, especialmente aquelas que ele não consegue simbolizar ou processar sozinho. O analista as “digeri” e as devolve de uma forma mais elaborada e compreensível, possibilitando ao paciente dar sentido à sua experiência. Isso é um ato de profundo cuidado.

A presença do corpo é fundamental para que o ambiente faça sua parte no processo de transferência terapêutica. São detalhes que estão no consultório do analista, uma coberta, como relatado por Winnicott em um dos seus textos. Mas também o ambiente como um todo.

Pois é, Freud nos legou uma metodologia para desenvolver a habilidade dos encontros saudáveis. Como me disse uma certa vez minha psicanalista, agora sobrou um osso para roer. No início é como Freud chamava, a limpeza da chaminé. Mas ao longo de um processo de encontro coisas profundas vão aparecendo. E roer esse osso não é nada fácil. É preciso tempo e entrega. 

O que estamos vivendo atualmente é uma fuga desta experiência de roer o osso. Como diziam os avós, é preciso comer um quilo de sal com uma pessoa para podermos dizer que realmente chegamos em algum lugar.

E cada vez mais, as pessoas estão longe do sal, do osso. E nós nos perguntamos, quem irá cuidar de um fêmur? Quem vai manter a tecnologia do encontro viva? Já que cada vez mais, as pessoas se isolam em seus esconderijos mais profundos. Cada encontro social é um confronto com a alteridade, com a subjetividade do Outro. Mesmo em encontros aparentemente superficiais, projeções, identificações e defesas inconscientes estão em jogo. 

Não queremos aprofundar aqui a psicanálise, mas só pontuar uma das tecnologias do encontro, que no mundo contemporâneo ainda mantêm laços com o cuidado que estamos perdendo, e que é um lugar onde podemos ainda encontrar afetos criativos. 

O leitor, pode buscar em edições anteriores desta coluna, um artigo em que tratamos especificamente desta questão do uso terapêutico da IA. O que é importante ressaltar nesta prosa é que as novas tecnologias estão deixando de lado os laços, os afetos. E que demoramos milhares de anos para desenvolver a tecnologia do encontro. 

A vida ainda é presencial, o nosso corpo é vivo, e deve ser explorado, e o encontro com o outro é um risco positivo à esta posição de isolamento. E não se engane, se ver bares e eventos cheio de pessoas, mas ninguém ali está disposto para um encontro realmente profundo, onde sua alma possa vir à tona. A metáfora que Margaret Mead nos ajudou a construir é fundamental. Esperar até que o osso do fêmur se cure, e ser cuidado enquanto isso, é um marco fundamental de que nós podemos suportar o Outro, o laço social.

Mas são “ossos do ofício” pensar e elaborar estas questões, ou se puder trazer outra licença poética, são “ócios do ofício”. Precisamos de mais tempo uns com os outros e menos com nossa atenção em uma tela, o ócio é fundamental, a falta de ocupação, o vagar livremente. A deriva permite que eu possa me conectar com outra pessoa sem esperar nada de volta, apenas a vivência de ser humano.

Sempre é tempo de roer o osso e desatar nós.

Prof. Dr. William Figueiredo é filósofo, psicanalista, pós-doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia e doutor em Ciências da Religião. Especialista em Psicopatologia e Bem-Estar Social pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, atua com atendimento clínico online, supervisão e assessoria em desenvolvimento humano e educacional. É também professor colaborador na Universidade Metodista de São Paulo e no Instituto Ânima, como formador em Educação Socioemocional. Ministra palestras, formações e workshops voltados à escuta qualificada, saúde mental e processos educativos.

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