A psicanálise decolonial revela como o racismo estrutural impacta silenciosamente o seu sistema nervoso e por que a ” ser forte” nem sempre é a melhor resposta.
Novembro chegou. Com ele, o Mês da Consciência Negra. Vemos palestras, celebrações da cultura afro-brasileira, discussões sobre Zumbi dos Palmares e a exaltação da nossa ancestralidade (sim, meu Odu Ossá, meu Ori). É um momento necessário de orgulho e memória.
No entanto, no silêncio do consultório, novembro muitas vezes traz uma realidade traumática. Não a dos tambores de festa, mas a do esgotamento silencioso.
Para muitos homens e mulheres negros, especialmente aqueles que ocupam espaços de destaque, liderança ou ambiente acadêmico, a sensação predominante não é apenas de celebração, mas de uma fadiga extenuante. Uma sensação difusa de que, não importa o quanto se conquiste, o quanto se estude ou o quanto se trabalhe, a conta nunca fecha. Existe sempre uma demanda por “ser duas vezes melhor para ter metade”.
Muitos chegam à clínica com diagnósticos de ansiedade generalizada, depressão ou síndrome de burnout. Minha resposta, fundamentada tanto na neurociência quanto na psicanálise decolonial, é frequentemente um alívio: Você não está quebrado. Você está reagindo. “Os oprimidos sempre acreditarão no pior sobre si mesmos”. Como nos diz Frantz Fanon.
O que você sente não é apenas uma falha individual na regulação das emoções. É o resultado do que chamamos de trauma colonial invisível. Cada cultura fornece, para determinados estresses específicos, identificados e codificados, modelos psicopatológicos ‘prontos para uso’, permitindo ao sujeito a economia da construção de uma formação de compromisso individual. (Tobie Nathan)
O racismo estrutural no Brasil opera de forma, psicopatologicamente, insidiosa. Ele não é apenas o insulto aberto na rua. Ele é o olhar desconfiado do segurança, é ser o único negro na sala de reunião, é a “piada” sutil no ambiente de trabalho, é a necessidade constante de provar sua inteligência e sua idoneidade moral.
Para o cérebro de uma pessoa negra, esses micro-eventos funcionam como sinais constantes de ameaça. O resultado é um estado de hipervigilância crônica.
Você aprendeu a “ler o ambiente” antes de entrar nele. Você aprendeu a modular o tom de voz para não parecer “agressivo”. Você aprendeu a se vestir para evitar abordagens policiais. Esse monitoramento constante consome uma quantidade absurda de energia psíquica.
Seu cérebro está trabalhando horas extras, 24 horas por dia, apenas para garantir sua sobrevivência social e física. O cansaço que você sente não é preguiça. É o custo biológico do racismo.
Culturalmente, aprendemos a valorizar a “força negra”. Aprendemos que, os negros suportam, aguentam, são resilientes como rochas. Essa narrativa foi necessária para a sobrevivência dos ancestrais e utilizada pelo discurso médico, inclusive durante procedimentos cirúrgicos sem anestesia.
Quando a única opção é “ser forte”, o indivíduo perde o direito à fragilidade. Perde o direito de desabar, de chorar, de não saber. O sofrimento é engolido a seco porque “temos que continuar”.
Isso cria uma cisão interna. Por fora, a performance de sucesso e força. Por dentro, uma criança ferida que nunca teve permissão para ser acolhida. Esse silenciamento do sofrimento é o terreno fértil para o adoecimento psicossomático: hipertensão, dores crônicas, gastrites e, claro, o colapso mental.
Os jovens negros de 10 a 19 anos têm 67% mais chance de morrer por dano letal auto infligido do que jovens brancos. Entre os 10 e 29 anos, a diferença continua: os negros são cerca de 45% mais afetados, e quando falamos só dos homens, esse número chega a 50%.
É aqui que a psicanálise tradicional, se não for crítica, pode falhar. Uma terapia que ignora a cor da pele e a história colonial do Brasil corre o risco de “privatizar” o sofrimento social. O psicanalista pode tentar encontrar a causa da sua angústia apenas na sua relação com seu pai ou sua mãe, ignorando que a sociedade também exerce uma “paternidade” violenta sobre corpos negros.
A Psicanálise Decolonial propõe um caminho diferente.
Ela não nega a importância da sua história familiar, mas a coloca em perspectiva. Ela valida a sua percepção de que o mundo é hostil. Ela entende que o seu medo não é “coisa da sua cabeça”, mas uma resposta a uma estrutura real.
Ao trazer o aspecto racial e colonial para a análise, tiramos a culpa das costas do indivíduo. Paramos de perguntar “o que há de errado comigo?” e começamos a perguntar “como eu posso construir uma existência saudável dentro de uma sociedade adoecida?”.
Na Trieb Psicanálise, onde coordeno a formação nesta área, vemos a análise como um “quilombo subjetivo”. Um espaço de refúgio e reconstrução.
Na sessão de análise, o objetivo é baixar a guarda. É permitir que o sistema nervoso entenda que, pelo menos naqueles minutos, não há ameaça. É um espaço para elaborar não apenas os traumas da infância, mas as feridas da negritude. É o lugar para retirar as máscaras brancas (como diria Fanon) que obriga a comunidade negra a usar, para construir um espaço de sobrevivência e descobrir quem são por baixo delas.
Neste Mês da Consciência Negra, um ato revolucionário que você pode fazer é cuidar de si.
Cuidar da sua saúde mental é um ato político. Um povo que cura suas feridas psíquicas é um povo que recupera sua potência de agir, de criar e de viver plenamente, não apenas de sobreviver.
Se você sente que carrega o peso do mundo, se a hipervigilância o impede de descansar, saiba que existe um caminho de retorno a si mesmo. A psicanálise decolonial é esse convite para depor as armas, retirar a armadura e, finalmente, respirar.
Você não precisa ser forte o tempo todo. Você só precisa ser você. E isso, por si só, já é grandioso.
É sempre tempo de desatar os nós da nossa herança colonial!
Referência dos dados:
BRASIL. Ministério da Saúde. Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros no Brasil: 2012 a 2016. Brasília: MS, 2018.
Prof. Dr. William Figueiredo é filósofo, psicanalista e educador físico. Pós-doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia e doutor em Ciências da Religião. Especialista em Psicopatologia e Bem-Estar Social pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, atua com atendimento clínico online, supervisão e assessoria em desenvolvimento humano e educacional. Atua como professor colaborador na Pós-graduação da Universidade Metodista de São Paulo. Ministra palestras, formações e workshops voltados à escuta qualificada, saúde mental e processos educativos com ênfase em: Psicanálise, Neuroeducação, Aprendizagem Tangencial, IA e Educação Socioemocional.
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A jornada analítica começa com uma primeira escuta. Se você está pronto para ir além dos sintomas e entender as raízes do seu sofrimento, agende uma conversa preliminar de acolhimento (online ou presencial).
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