Quando não podemos mais mudar a situação, nós somos desafiados a mudar nós mesmos, dizia Victor Frankl. Esse lembrete nos conduz a reflexão limite, que precisamos mudar urgentemente nossa forma de viver no mundo, nada é mais imediato que mudar a nós mesmos, pois a situação não tem mais saída concreta.
Vivemos o paradoxo de saber que o planeta está à beira do colapso e, ainda assim, acelerar a destruição. Relatórios da ciência nos alertam que ultrapassamos 7 dos 9 Limites Planetários – fronteiras críticas que, se violadas, podem levar a mudanças ambientais irreversíveis. Sabemos que o limite é real, mas nossa resposta é sempre a mesma: mais consumo, mais excesso, mais do mesmo.
A razão por trás dessa autodestruição? Ela pode estar na forma como nos organizamos economicamente e, mais profundamente, em nossa própria psique. Precisamos de um vocabulário que vá além de “ganância” ou “irresponsabilidade”. Precisamos do conceito de Gozo, emprestado da psicanálise de Jacques Lacan.
Para o senso comum, “gozo” é sinônimo de prazer. Para Lacan, é algo bem mais sombrio e poderoso. O prazer é sobre manter o equilíbrio, satisfazer uma necessidade e parar. O Gozo é a satisfação que se realiza no excesso, na transgressão e, ironicamente, na dor. É a pulsão incontrolável que nos leva a ir além do limite, mesmo quando isso nos custa caro. O que na psicanálise Freudiana seria a pulsão de morte e compulsão a repetição.
Pense no Gozo como o vício fundamental da civilização contemporânea.
A nossa sociedade, sobretudo o capitalismo de consumo, trocou o antigo “imperativo da renúncia” (o trabalho duro e a poupança) pelo “imperativo do Gozo”: “Goze! Compre! Produza! Não pare de se satisfazer!”
Este processo se evidencia pela norma contemporânea, do empreendedor de si mesmo. Hoje vivemos uma sociedade do cansaço. O que produz diversos tipos de patologias psíquicas, ou seja, introjetamos a lei do desempenho, como salienta Byung-Chul Han.
Portanto, é esse mandato que alimenta a máquina de destruição.
O aumento da produção de plástico, a queima incessante de combustíveis fósseis e a degradação da biodiversidade não são apenas falhas de planejamento. Elas são a manifestação material de uma pulsão coletiva que não aceita o freio. O planeta, com seus recursos finitos, impõe um limite que o nosso desejo de “Mais de Gozar” se recusa a respeitar.
Quando a ciência nos apresenta os Limites (mudança climática, perda de biodiversidade, uso da terra, etc.), ela está nos mostrando o Real na linguagem matemática e biofísica. O Real, na psicanálise, é o impossível de ser simbolizado, a rocha dura da realidade que resiste à nossa fantasia de controle.
Os cientistas nos dizem: “A concentração de CO2 deve ser no máximo X. O ideal de floresta deve ser Y. A acidificação dos oceanos não pode passar de Z.”
O que acontece quando confrontamos esse limite? O primeiro movimento é negar a crise, transformando o “Real” científico em “opinião” ou “fake news”. É o sujeito se defendendo do choque de realidade, protegendo seu direito de continuar gozando.
Quando a realidade (enchentes, secas extremas, pandemias) se impõe, o que surge é a ansiedade climática e o desamparo. A catástrofe ambiental é a angústia coletiva que sentimos por estarmos, de fato, violando a Lei (natural).
O grande problema é que a humanidade tem a fantasia de que o limite do planeta, assim como as regras sociais, pode ser negociado, contornado ou resolvido por tecnologia (uma versão moderna da magia).
Enquanto o Gozo busca o excesso e a satisfação a qualquer custo, o Desejo em Lacan é sempre mediado pela Falta. Desejar é aceitar que algo está perdido e buscar algo novo, aceitando a Lei.
Para não sucumbirmos ao colapso, o desafio da civilização não é apenas econômico ou tecnológico, mas fundamentalmente ético e subjetivo.
A crítica lacaniana ao Discurso do Capitalista, onde o sujeito é impelido a um incessante mais-de-gozar através da produção e do consumo (cf. Seminário 17, O Avesso da Psicanálise), pode nos ajudar na fundamentação psicológica para a Teoria do Decrescimento.
Esta corrente de pensamento, surgida no campo da ecologia política e da economia, postula que o atual modelo econômico de crescimento ilimitado não é apenas socialmente injusto, mas também ecologicamente insustentável. Os defensores do Decrescimento, como Serge Latouche, argumentam que o planeta já ultrapassou vários dos chamados Limites Planetários.
Nesse cruzamento de ideias, o Decrescimento pode ser visto como uma proposta de travessia social da fantasia do Gozo Ilimitado. O modelo de crescimento contínuo alimenta a ilusão capitalista de que a felicidade e a satisfação (o Gozo) estão em um objeto sempre novo a ser consumido.
A recusa do crescimento ilimitado seria, assim, uma tentativa de renunciar a essa fantasia destrutiva, movendo a sociedade de uma busca incessante por um Gozo excessivo e mortal para uma redefinição do que é uma vida digna (‘linha mínima de dignidade’) dentro dos limites impostos pela realidade do mundo.
Precisamos de uma Lei: Não apenas novos acordos de cúpula, mas uma Lei Simbólica poderosa o suficiente para impor uma borda (um freio) ao nosso Gozo ilimitado de consumir e destruir.
Aceitar os Limites Planetários é aceitar a castração coletiva – a perda da fantasia de que somos mestres absolutos do mundo. Só ao reconhecer a finitude do planeta e a nossa própria, podemos barrar a pulsão de Gozo e abrir espaço para um novo tipo de Desejo: o desejo de conviver com o Real do planeta, e não de destruí-lo em nossa busca por uma satisfação impossível.
O preço de não escutar a ciência e a psicanálise é transformar o Real do planeta no Real do trauma, que irromperá como uma catástrofe sem precedentes. A única saída é fazer a economia do Gozo. Pare de gozar (destruir) para começar, finalmente, a desejar um futuro.
Ainda há tempo de sustentar o desejo para desatar nossos nós!
Prof. Dr. William Figueiredo é filósofo, psicanalista, pós-doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia e doutor em Ciências da Religião. Especialista em Psicopatologia e Bem-Estar Social pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, atua com atendimento clínico online, supervisão e assessoria em desenvolvimento humano e educacional. É também professor colaborador na Universidade Metodista de São Paulo e no Instituto Ânima, como formador em Educação Socioemocional. Ministra palestras, formações e workshops voltados à escuta qualificada, saúde mental e processos educativos.
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