Sede de justiça

Quando eu era criança, a primeira lição de justiça no estado democrático de direito que presenciei foi ver meus irmãos brigando. Eles estavam jogando algum jogo de tabuleiro e a minha pouca e curiosa idade, fez com que eu mexesse as peças, gerando um descontentamento no meu irmão que parecia levar desvantagem naquele momento. Minha irmã, vendo peças onde antes não havia, o acusou, que após ouvir rebateu a culpa sobre mim, finalizando com um tapa na minha pessoa, levando-me ao líquido lacrimal. Minhã advogada de defesa, resolveu me resguardar, usando contra meu irmão, um artefato que se usa para varrer o domicílio. Enquanto isso, o procurador arremessou a tampa metálica da lata do achocolatado que dá energia a quem beber. A casa, naquela tarde, virou o cenário de guerra, similar ao leste europeu. Eu tentando entender qual lado me favorecia, apenas continuava chorando.
Foi estabelecido um período de trégua para ir ao banheiro que ficava junto a cozinha, lado da minha irmã, que também impediu que o lanche da tarde fosse feito até que meu irmão assumisse que havia roubado no jogo e colocado a culpa em mim. Outro impasse durante a trégua era poder assistir os desenhos da tarde na sala, território do meu irmão, que exigia reparação contra a difamação sobre sua pessoa e o pote de bolachas que ficava no armário.
Quando a apresentadora com uma manchinha na perna entrou no ar, os ânimos se acalmaram, meu irmão gostava dos desenhos e minha irmã das atrações que iam ao programa. Eu assistia a tudo que aparecia, mas preferia os heróis japoneses que passavam no outro canal e infelizmente, a casa só tinha uma televisão. Fiz o melhor pude, uma apelação com recurso, mas ninguém me ouviu. Na verdade, houve um armistício e ambos se voltaram contra mim e meu pranto. Me colocaram em cima da estante, ordenando o fim do meu choro, caso contrário, haveria uma punição em dobro. A vida é assim, às vezes os dois times se viram contra a torcida.
Liberdade e justiça são vizinhas, moram na mesma cidade, mas convivem com grupos diferentes. Um frequenta, às vezes, o lugar que o outro não tira o pé. O outro sabe onde encontrar mesmo que nunca tenha lhe procurado. Mas a verdade é que um não vive sem o outro. Há momentos em que a liberdade desmedida sugere que o crime pode ser vantajoso; em contrapartida, uma grande dose de justiça pode demonstrar que o crime não compensa. Se você pesquisar qualquer assunto, vai encontrar fatos que lhe inspirem e desanime na mesma hora.
Naquela tarde, eis que chega minha mãe, a ministra do STF. Ela se surpreende ao me ver suspenso na estante, enquanto a esquerda e a direita se deleitavam com a programação televisiva embalados pelo ato de triturar os biscoitos na boca ao som do Trem da Alegria. Fiz o que coube, uma delação premiada e acabei sendo absolvido do regime fechado. Ganhei uma pena leve, apenas levar o lixo, que acabei levando e aproveitando a oportunidade para brincar na rua. Não queria ver a ministra lendo o relatório do seu dia e ainda tendo que administrar a gestão do lar com aqueles dois corruptos. Eu, sim, tinha um bom argumento, por isso me livrei do castigo. Na rua, meus amigos me perguntavam sobre meus irmãos e eu dizia que estavam de castigo.
“E por que você não está de castigo também?”
“Porque eu sou centrão!”
No fundo, todos querem que a justiça seja feita. Às vezes, mais para uns do que para outros.
Beijo, gente!

Thiago Maroca é escritor, membro da Academia Valparaisense de Letras, produtor audiovisual, fotógrafo, mestre em educação, escoteiro, pai do Théo e uma meia dúzia de coisas que não cabem nesse espaço.
Manda um OI: @thiagomaroca/thiagomaroca@gmail.com

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