O Velho e o Mar é considerado o último grande livro de Hemingway que teve sua publicação durante a vida do autor.
O velho, chamado Santiago, que se sente em uma maré de azar, e um jovem chamado Manolín, que o incentiva a continuar tentando. Após mais de 80 dias tentando pegar o espadarte gigante, o velho consegue fisgá-lo, mas o peixe oferece uma resistência brutal.
Comenta o autor: “O peixe também é meu amigo. Nunca vi ou ouvi falar de um peixe desse tamanho. Mas tenho de matá-lo. É bom saber que não tenho de tentar matar as estrelas.” No final, Santiago retorna à sua vila, apenas com a cabeça e as espinhas do peixe enorme.
Não foi o peixe que ele trouxe. Mas seu desejo. Como diz Santiago, “ainda bem que não temos que caçar a Lua” ou mesmo o Sol.
Em um mundo que nos impele a buscar constantemente a felicidade e a realização, paradoxalmente, muitas vezes nos encontramos em uma fuga incessante: a fuga do nosso próprio desejo.
A busca de Santiago, é neste sentido uma tentativa de se manter vivo, não ser um velho, que não pode mais ir ao mar, mas alguém que busca por aquilo que não pode ser alcançado.
O médico e psicoterapeuta Jacob Levy Moreno, dizia que “o homem tem medo de sua espontaneidade. Seus antepassados da selva temiam o fogo: temeram o fogo até que aprenderam a acendê-lo. Do mesmo modo, o homem temerá viver apelando à sua espontaneidade até que aprenda a provocá-la e a educá-la.”
A coisa Freudiana, Das Ding, é como nomeamos o vazio inerente a experiência vivida, algo sempre nos escapa, e mesmo buscando dia a dia, tudo que fazemos não é suficiente para alcançar o objeto perdido.
Um amor que reverbera nosso coração, por anos, talvez por toda uma vida, e que com toda a sua potência, não chega a se realizar. Assim, também, podemos afirmar que temos medo do amor, quando ele se manifesta em sua totalidade, em seus espelhamentos do Eu buscando a grandeza, a plenitude.
Como alerta Lacan, o neurótico está sempre arrumando sua mala para uma viagem que nunca vai fazer. A vida é uma constante oscilação entre a ânsia de ter e o tédio de possuir, como salienta o filósofo Arthur Schopenhauer.
O medo do desejo não é apenas uma curiosidade teórica; ele se manifesta em nossas vidas de maneiras sutis e devastadoras, moldando nossas escolhas, limitando nosso potencial e, em última instância, nos afastando da autenticidade.
No texto “Arruinados pelo êxito”, publicado em 1916, Freud se perguntou por que as pessoas não conseguiam sustentar a felicidade. É a frustação de alcançar algo que foi fortemente e intensamente desejado. Somos tomados pelo vazio, e nos perguntamos, “era só isso?”. É uma vivência nada agradável.
Mas, afinal, por que tememos aquilo que, em essência, nos move? A resposta reside nas complexas camadas do nosso inconsciente. Tomar contato com o desejo pode ser devastador, pelo simples fato que ao alcançar o objeto, ele perde o sentido. Desejo é desejar, mas não realizar. Desejo não é um objeto, mas um movimento interno.
O desejo, em sua forma mais pura, é uma força muitas vezes irracional e, por isso, incontrolável. Ele desafia a lógica, as convenções sociais e até mesmo as nossas próprias expectativas sobre quem deveríamos ser.
Quando um desejo surge, ele pode entrar em conflito com os pilares da nossa moral, da nossa criação ou das normas que internalizamos. Pensemos nos sonhos de mudança radical, nos impulsos de expressar uma paixão “proibida”, ou mesmo no simples anseio por uma vida que destoa das expectativas familiares.
O medo, nesse cenário, é uma espécie de guardião, uma barreira erguida para nos proteger de uma possível ruptura, da culpa, da rejeição ou de um futuro incerto. Neste sentido entram os mecanismos de defesa psíquicos.
Há, por exemplo, a projeção, onde atribuímos a outros os desejos que nos assustam em nós mesmos, criticando neles aquilo que secretamente almejamos. E a racionalização, essa ginástica mental que nos permite encontrar justificativas lógicas para não seguir nossos anseios mais profundos, camuflando o medo sob o véu da prudência ou da sensatez.
O que a psicanálise nos ensina é que essa fuga, embora aparentemente protetora, tem um custo alto. Viver em negação dos próprios desejos é viver uma vida pela metade, aprisionado em uma existência que não nos pertence plenamente.
As neuroses, frequentemente, são o resultado dessa repressão, com a energia do desejo, que não pode ser expressa diretamente, se manifestando em sintomas de ansiedade, depressão ou compulsões etc.
A terapia psicanalítica, nesse sentido, não é apenas um divã para desabafos, mas um espaço de coragem. Um lugar onde podemos, com o apoio de um profissional, desenterrar esses desejos reprimidos, enfrentar os medos associados a eles e, gradualmente, integrar essa força vital à nossa consciência.
Ganhamos a capacidade de fazer escolhas mais autênticas, de construir relacionamentos mais verdadeiros e de viver uma vida com maior propósito. Lidar com o medo do desejo é, em essência, um ato de profunda autodescoberta e empoderamento. É a jornada para reconectar-se com a parte mais essencial de nós mesmos e, finalmente, ousar desejar sem culpa, sem medo, e com a coragem de ser quem realmente somos.
Talvez o maior aprendizado seja aprender a cuidar do simples, do que não é tão grande, magnifico, mas do que o cotidiano pode oferecer, de poder estar junto, com todos os defeitos que o outro possa oferecer. Com o mais singelo que eu possa extrair de um dia.
Viver pode ser algo muito simples, se a fantasia não for um idealismo sem limites. Ser feliz é ser contente. É cuidar do que é finito, e o mais significativo, gostar do desimportante, dos parafusos de veludo de Manuel de Barros.
Reconhecer o medo do desejo é o primeiro passo para a liberdade.
Sempre é tempo de desatar nós!
Prof. Dr. William Figueiredo é filósofo, psicanalista, pós-doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia e doutor em Ciências da Religião. Especialista em Psicopatologia e Bem-Estar Social pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, atua com atendimento clínico online, supervisão e assessoria em desenvolvimento humano e educacional. Professor colaborador na Universidade Metodista de São Paulo e no Instituto Ânima, forma educadores em Educação Socioemocional. Ministra palestras, formações e workshops voltados à escuta qualificada, saúde mental e processos educativos.
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