Onde guardamos a criança que fomos?
Por Marco Sousa – @marcosousa_psic_somatica
Embora adultos e crescidos, observamos constantemente que existem certas atitudes que não surgem de uma escolha racional. As interpretações que construímos em torno da realidade são dirigidas por um guia interno repleto de filtros e lentes perceptivas inconscientes.
A infância é um lugar bem vivo na alma que habita num corpo e esse mesmo lugar tem uma representação: “a imagem de uma criança interior”. Quando alguém fala do passado, expressa sempre sob o olhar dessa Imagem Psicológica. Por outras palavras, cuidar do passado é cuidar da pessoa que o viveu.
O adulto pode crescer em tamanho físico e racionalidade, mas a sua Criança Interior permanece sempre ao seu lado, à espera de um olhar respeitoso, digno e amoroso. Essa imagem interna guarda um sem fim de informações que pautam as narrativas em relação à vida, aos outros e a nós mesmos. Olhar para essa imagem é como se deparar com um universo infinito de possibilidades e mistérios, histórias, narrativas, desejos, sonhos e anseios.
O passado implica sempre em restabelecer a conexão com esse lugar que se revela numa primeira instância, frágil, vulnerável e sensível. Neste sentido, a psicologia evoluiu de modo a oferecer caminhos de escuta desse período impactante, existindo um conjunto de escolas e modelos teóricos que explicam o desenvolvimento da criança, bem como as consequências de quando esse natural desenvolvimento é interrompido por traumas e feridas emocionais.
Olhar para esta imagem inicia-se sempre com uma escolha derivada de um anseio, onde o nosso Adulto Responsável e Controlador não consegue encontrar uma solução para um problema constante, um confronto com um acontecimento dramático ou outra situação que destapa a crença ilusória que temos tudo sob o controle. Perante a ânsia, o adulto é forçado a olhar para essa “criança interior”, mesmo indo por vezes contra todas as forças do mundo. Nesse momento, o magnetismo emocional do passado gravado nos nossos tecidos celulares mais íntimos puxam para o contacto com esse período.
Quem se atreve de uma forma segura conectar-se com essa imagem passada, encontra um universo no qual impacta com a sensação de que somos seres minúsculos assombrados, impactados pela imensidão da vida. Traumas, feridas, ausências, vazios, desequilíbrios por um lado, e por outro alegria, sonhos, ambições e Vitalidade.
A psicoterapia serve como um mapa, no qual o cliente e profissional se dirigem respeitosamente para esse lugar, com confiança e segurança. Nesse caminho a percorrer, todas as crianças procuram algo.
Para onde se dirige esse olhar dos pequenos? A criança olha sempre para os seus criadores, o pai, a mãe e, no profundo amor e gratidão que sentem perante a oferta do dom da vida, querendo tomar as suas dores. A forma como viveram essas trocas de amor, dão origem à imagem interna da criança. Como pequenos, estão inteiramente disponíveis ao serviço do bem-estar dos pais pois é deles que procura receber toda a proteção e cuidado que necessitam para sobreviver. Amam os pais incondicionalmente, mas esses pais podem não saber como amar, visto eles também terem neles a sua própria Criança Interior Ferida. Assim, o adulto terá que cuidar dessa criança interior, dando-lhe oportunidade em devolver-lhe a dignidade que perdeu, fruto de feridas emocionais que marcaram a alma, mente e corpo. A partir do momento que se reencontra com essa imagem, algo começa a soltar-se no coração e alma da pessoa.
Este caminho requer tempo, propósito e um profundo auto-respeito até a criança interior ser devolvida ao lugar onde ela esteve sempre, no coração de cada um de nós.